GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1980.
Gravura de Théodore de Bry. http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuheckbry03c.htm. Acesso em 22/06/2006.
1 OS RELATOS DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS ENQUANTO FONTE HISTÓRICA
É muito interessante e intrigante analisar os relatos dos viajantes estrangeiros sobre o Brasil, principalmente para a produção da historiografia e a escrita da História do Brasil. Eles contêm dados extremamente importantes sobre uma determinada época, além de demonstrar como viviam as pessoas que aqui moravam e a visão dos europeus sobre este modo de vida.
Quando nos deparamos com eles, vimos que existe uma diversidade muito grande, ou seja, que cada um descreve ou representa através de pinturas e gravuras aquilo que viu e de acordo com os seus próprios interesses. Uns descreviam sobre a natureza, outros sobre a economia local, e, como se comportavam as pessoas que aqui moravam.
É claro, cada um com sua visão, mas por trás de tudo havia a teoria do Eurocentrismo, ou seja, a Europa como centro de tudo. Durante os vários anos que se passaram desde o “descobrimento” do Brasil até o século XIX, muitos destes viajantes vieram ao Brasil. Estes viajantes eram patrocinados pelos governantes europeus ou por classes abastadas da burguesia, portanto vinham em viagens oficiais.
Os principais viajantes que aqui chegaram, dentre eles portugueses, franceses, holandeses, ingleses, espanhóis, entre outros, vão descrever que aqui era uma terra farta, onde tudo que se plantasse dava, que seus rios eram ricos em peixes, suas florestas fartas em espécies animais e vegetais, mas que aqui, tudo e todos eram incivilizados, que não haviam cidades, nem indústrias, que não havia desenvolvimento e que nem poderia algo prosperar se não houvesse a interferência de seus países de origem.
Esta visão de inferioridade da qual eles se valiam e tentavam justificar suas pesquisas sobre a população nativa, principalmente, é o que chamamos Eurocentrismo, ou seja, a Europa como centro, como se só eles fossem civilizados, como se só eles tivessem a religião verdadeira, leia-se o Cristianismo, como se só eles tivessem um alto grau de desenvolvimento.
Eles não levavam em consideração que o que aqui era produzido, a natureza, a cultura, a forma de se organizar em sociedade eram diferentes da realidade deles próprios e que tudo aqui era muito diferente, a vida aqui no Brasil era diferenciada da que eles levavam na Europa.
Estes viajantes deveriam analisar a forma como aqui viviam as pessoas, sua cultura e tradições, sem levar em conta a teoria Eurocêntrica.
Ao analisarmos estas fontes, estes relatos, devemos sempre estar atentos a época em que foram escritos, de que assuntos tratavam, por quem foram escritos, quais as intenções em que foram escritos ou produzidos, para quem foram escritos, o que dizia a teoria eurocêntrica sobre os outros povos, para que não incorramos em erros e não apenas reproduzimos as fontes deixadas por estes viajantes ao produzir a historiografia brasileira.
Devemos tomar cuidados para não incorrermos em erros e pensarmos como os viajantes estrangeiros, a luz do Eurocentrismo, que os nossos habitantes, até séculos passados eram inferiores ou mesmo que não produziam ou não tinham cultura.
Não devemos também ser anacrônicos e nem etnocêntricos ao analisarmos as épocas passadas ou diferentes formas de se expressar culturalmente dos outros povos.
1.1 REPRESENTAÇÃO E DISCURSO NOS RELATOS DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS
Os relatos dos viajantes estrangeiros sobre o Brasil faziam parte da tradição européia das viagens naquele determinado momento histórico. Essas visões e discursos e narrativas dos viajantes foram transformados em relatos, que são fontes para a pesquisa e para a produção historiográfica. Esses relatos são, na realidade, narrativas não preocupadas em elaborar teorias, textos científicos. O descobrimento e a conquista de novos territórios trouxeram uma nova necessidade para os europeus, que era conhecer o que era desconhecido. Portanto, o Brasil recebeu inúmeros viajantes, porque possuía uma natureza exuberante, além de potencial econômico e necessidade de ser conhecido.
Mas, na realidade, por que estes viajantes saem da Europa, terra tão longínqua, para estudar e descrever estes territórios? A resposta, na realidade, é que para os viajantes estrangeiros europeus, viajar trazia a possibilidade de riqueza e status. Era uma possibilidade de ascensão a uma nova condição social. Na realidade esses viajantes já faziam parte de uma elite européia.
Os viajantes europeus já citados buscavam informações sobre o novo mundo além mar e consideravam a Europa “o centro do mundo” e possuidores de uma “cultura superior”. Os viajantes estrangeiros construíram seus relatos com base no olhar e na sua cultura. A visão destes viajantes é feita por partes, ou seja, fragmentada. Cada viajante observa um aspecto, tendo sempre a Europa como base para seus relatos. Estes relatos podem e devem ser utilizados pelos historiadores nas suas pesquisas e produções. Porém, tais relatos, enquanto fontes e textos para a produção historiográfica e da história do Brasil, não devem ser encarados como neutros, porque trazem a Europa como referência, imparciais e inquestionáveis, bem como suficientes para explicar uma realidade histórica. É necessário analisar, refletir, contextualizar as representações e os discursos contidos nos relatos dos viajantes estrangeiros sobre o Brasil.
Um destes viajantes estrangeiros, Pero de Magalhães Gândavo e o gravador Théodore de Bry, além de outros, são muito especiais para a produção historiográfica brasileira, pois eles produzem textos e imagens sobre os rituais de antropofagia, realizado por alguns grupos de indígenas brasileiros.
Pero de Magalhães Gândavo, historiador e cronista português, “é o autor da primeira história do Brasil”[1]. Veio para o Brasil, e permaneceu de 1565 a 1570, visitando outras regiões do país, e escreve vários tratados sobre nossa história, dentre eles História da Província de Santa Cruz, que publica em 1576.
Como “bom” europeu descreve sobre vários assuntos, mas o texto mais intrigante é sobre o ritual de antropofagia realizado pelas “tribos” de nativos Tupinambás, Aimorés e Tapuyas, o que causou-lhe uma má impressão sobre o aprisionamento de guerreiros e o ritual antropofágico realizado por esses povos.
Os relatos demonstram que os indígenas tratavam muito bem seus prisioneiros, com boa alimentação e mulheres, inclusive dando-lhes “a própria filha ou irmã em casamento”[2], satisfazendo todas as suas necessidades. As mulheres que são dadas ao guerreiro têm a função de cuidar do prisioneiro, durante todo tempo que o mesmo permanecer vivo na tribo.
Os rituais são realizados com toda pompa e grandeza, pois é uma forma de mostrar o respeito que se tem com o outro, sinal de alteridade. O sacrifício é realizado, em algumas vezes com data marcada e o guerreiro sabe do seu destino, mas não há tanta preocupação, pelo fato de que também já poderá ter realizado esse ritual anteriormente.
Um outro relato sobre os rituais de antropofagia é do calcógrafo, ourives e gravador flamengo, Théodore de Bry, que nunca esteve na Brasil, mas através dos relatos dos viajantes estrangeiros, principalmente de Hans Staden, soube retratar, conforme sua visão os povos indígenas do Brasil que realizavam rituais antropofágicos, principalmente os tupinambás, demonstrando toda sua concepção européia sobre o fato, assustando a todos aqueles que admiraram suas obras.
É uma verdadeira coleção “de narrativas de viagens que constitui a primeira tentativa, no século XVI, de apresentar à Europa, em grande escala, uma imagem visual do Novo Mundo. Esses relatos de viagens sempre despertaram apaixonado interesse”[3] aos europeus, que viam os outros povos como incivilizados, sem cultura, sem rei, sem lei e sem religião.
As imagens de Théodore de Bry são emblemáticas, com cenas de antropofagia, com o corpo dos guerreiros sendo cortado aos pedaços durante o ritual. O que se sabe é que as entranhas eram para as mulheres mais velhas e o cérebro para os guerreiros. As mulheres deveriam bater muito no prisioneiro e depois cuidar dele para o ritual antropofágico, que poderia levar dias, meses ou até vários anos para acontecer. A morte chega através de uma paulada na cabeça e a carne era cortada com lâminas de pedra, cortadores, machados, etc. durante o ritual, a parte interna era toda tirada e cozida e todos os membros da comunidade deveriam participar do ritual sagrado, em demonstração de respeito.
Vamos demonstrar através de algumas imagens e
Gravuras do holandês Theodore de Bry (1528-1598) retratando um ritual de canibalismo dos índios tupinambás. Era costume, entre vários povos indígenas, comer seus adversários; acreditavam que com isso o espírito guerreiro do inimigo se incorporava ao seu. O homem branco, que acompanha horrorizado a cena em que os índios comem pedaços de carne humana, seria o alemão Hans Staden, que, em 1554, foi feito prisioneiro pelos índios tupinambás no litoral de São Paulo.[4]
Esses povos realizavam a antropofagia porque acreditavam que, ao devorar um guerreiro, eles também ficariam fortes e valentes, assim como, ao comer parte de um sábio, iriam incorporar a sua sabedoria. Esse ritual poderia ser também por vingança contra um guerreiro de uma tribo inimiga ou mesmo contra um colonizador, que tinha vindo para tomar suas terras e suas mulheres.
Os europeus, com sua forma de encarar e ver o mundo, não souberam entender os povos que aqui eles encontraram e isso provocou o genocídio compreendido contra todos os nativos, restando poucos para contar, narrar e viver a sua própria história, mas isso já é uma outra história.
http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuheckbry03a.htm. Acesso em 22/06/2006.
http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuheckbry03b.htm. Acesso em 22/06/2006.
http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuheckbry03c.htm. Acesso em 22/06/2006.
http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuheckbry03d.htm. Acesso em 22/06/2006.
http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuheckbry03e.htm. Acesso em 22/06/2006.
[1]http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/informativa/gandavo.htm. Acesso em 22/06/2006.
[2] CAMPOS, FLÁVIO; MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da história: Ensino Médio. vol. ún. 1 ed. São Paulo: Escala Educacional, 2005. p. 170.
[3] http://www.ifcs.ufrj.br/~humanas/0036.htm. Acesso em 22/06/2006.
[4] http://www.abrale.com.br/artigos/001.htm. Acesso em 22/06/2006
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